Friday, May 14, 2010

Sobre O Cheiro da Xereca

Pra encerrar com essa história, eu diria que:

Se o cheiro da xereca não tá bom:
é só lavar que fica nova.

E quem não gosta do cheiro da xoxota,
que cheire bem e bastante
do que quer que mais goste.

No país de Gregório de Mattos,
meu tio-avó.



Em prosa:

Pessoalmente achei boas as matérias sobre a ópera Tamanduá. Acontece que o texto colocou muita ênfase na questão da palavra "xereca" e isso foi colocado fora de contexto e sem ressaltar que se trata de uma paródia de um segmento de nossa música comercial e que esse é apenas um breve momento cômico em um trabalho denso de drama, poesia e musica.

Por isso tirei a xereca da obra. Tirei a palavra, mas não tirei o cheiro.

Acho que a ênfase nesse aspecto pseudo-sexual da obra se deve mais a uma certa hipocrisia brasileira do que ao texto em si. Tem mais a ver com a maneira como foi feita a leitura. Eu já tinha evitado entrar em conflito com essa mentalidade, quando transformei o texto na peça, e tirei as palavras "xereca", "xoxota" e "fuder". Achei que a obra ficava mais abrangente assim, pois pode ser apresentada tanto em escolas quanto para um público adulto.

É claro que essas são palavras completamente fora do nosso vocabulário cotidiano. Um compositor que pretende utilizar os ritmos da poesia oral brasileira contemporânea e assimilar esse nosso rico falar em música de concerto séria; esse compositor deveria ficar longe de vocábulos chulos. Afinal essas palavras que se nos fazem pensar em sexo quase não são utilizadas na nossa língua e é capaz que o público nem entenda do que se está falando. Sério mesmo.

Enfim, não pensei nem muito no assunto, já produzi discos de hip-hop nos EUA em que temos uma faixa "clean" e outra "dirty". Le-se na bula: "Se você considerar o vocabulário ofensivo, por favor escute a outra versão."

A ênfase ficou nas palavras "xereca", "xoxota" e "fuder", mas parece que há uma criança sapeca que quer ficar repetindo essas palavras, só pelo prazer reprimido de poder falar em voz alta, aquilo que só se menciona no escuro.

Mas nem tanto assim, talvez até por consequência dessa repressão ancestral, a sexualização dos meios de comunicação é tamanha que torna até complicado divulgar um trabalho que tenha algum caráter de seriedade. Em entrevista eu disse diversas vezes que há coisas mais importantes na obra. Mas é uma forma de lidar com um público que já está estabelecida pelos profissionais da imprensa: qualquer comentário com conteúdo sexual tem prioridade.

Por isso mesmo se fez necessária a composição de uma obra erudita falando sobre o "Cheiro da Xereca" pois essas palavras são as únicas que chamam a atenção da mídia brasileira. Era preciso que alguém trouxesse esse assunto a tona, para que exista uma reflexão sobre a responsabilidade de formação cultural dos veículos de comunicação.

Esse trecho de Dois minutos da ópera, essa paródia a que nos referimos apresenta um vocabulário básico e uma construção musical extremamente simples, um acorde apenas, como é característico do personagem retratado e do segmento da música de mercado que está sendo comentado. No contexto da ópera essa é uma cena que alivia a tensão acumulada.

Quando fizemos nossas primeiras apresentações de trechos da ópera Tamanduá, era um público de muitos brasileiros, mas ninguém manifestou repúdio ou choque por conta do vocabulário. Todos entenderam a intenção do texto e souberam o contexto.

Após nosso primeiro concerto, uma senhora brasileira muito velhinha veio me abraçar emocionada, dizendo que a muitos anos ela não tinha rido e chorado tanto. Perguntei se ela não tinha se assustado, me disse que não há como não entender o que se passa de jeito que a história é contada. Quem é artista vive por um momento assim.

É claro que no youtube tudo fica fragmentado, mas cabe ao jornalismo responsável colocar os dados em contexto. Com certos assuntos que ainda habitam o reino do tabu no imaginário brasileiro, é preciso de cuidado extra.

Por hora deixo o clipe no ar, pra quem quiser ver.

Nossa mídia está voltada para assuntos de exploração e banalização da sexualidade. Quando alguém escreve uma ópera que incorpora a linguagem da MPB ao repertório tradicional, o único fato jornalístico que parece relevante é uma palavra que foi usada.

Mas o que deve ser notícia? O que é importante para a nossa cultura e o nosso país? Será que a formula fácil de apelo sexual se tornou realmente a única formula lucrativa na indústria cultural? Ou há ainda pontos de resistência onde a originalidade da nossa cultura pode mostrar sua força?

Na ópera Tamanduá o gênero comercial de apelo sexual é apenas um. Temos samba, baião, xote, xaxado, maracatu, fado, cantos africanos e indígenas, e outras coisas que não sei de onde saíram. Tudo incluído em um panorama de nossa alma, de nossa espiritualidade sincrética e de nossas tendências musicais, inserindo a nossa cultura no corpus do repertório operístico. Isso é um dado novo, esse sim é o fato que deve ser ressaltado.

Os jornalistas sabem disso. Um começou a entrevista dizendo que tinha procurado "ópera brasileira" no Google e os resultados são poucos. Isso foi incluído na matéria, mas ficou enterrado sob a quantidade de espaço dedicado à questão daquela palavra específica. Mesmo porque basta mencionar certas partes do corpo para que todos virem crianças na escola, onde qualquer alusão à sexualidade causa tumulto e burburinho.

Veja bem: eu posso me divertir com bobagens tanto quanto qualquer outro, mas o espaço desproporcional na mídia que é dedicado a esse tipo de coisa tem efeito destruidor sobre o que possa existir de verdadeiro valor em nossa produção.

O que choca não é a palavra em si, mas o estranhamento do contexto em que ela é colocada.

Nós somos o país de Gregório de Mattos (o Boca-do-Inferno) e de Plínio Marco (da Navalha na Carne) para citar apenas dois.

Cabe mencionar que Jeffrey Gall é um dois maiores especialistas vivos em ópera no mundo. Se este homem escolheu a ópera Tamanduá para trabalhar com seus alunos, isso deveria ser um fato jornalístico a ser celebrado como vitória da cultura brasileira em um campo em que somos virtualmente inexistentes. Um testemunho do poder que nossa cultura tem de gerar novos paradigmas.

Eu gostaria de falar sobre a espiritualidade nessa ópera chamada Tamanduá, nossa opera brasileira, onde todos os santos convivem e a história não acaba com a morte, continua, com espíritos que nos visitam, e as mulheres são muito sábias, e há lavadeiras que vem lavar o sangue das ruas, depois que os homens se matam.

Há muito que poderia ser dito sobre o abraço do tamanduá, o abraçar que é tão forte característica da nossa cultura, algo tão fundamental e forte que evita guerras e cura doenças.

Espero ainda ter a chance de ter conversas muitas, boas e longas, sobre essa história que me veio assim, sem eu saber bem de onde, essa história pela qual tenho afeto mas não tenho apego, como se apenas a tivesse ouvido contar de alguém.

Há muito ainda que ser dito, tamanduá-bandeira, símbolo da nossa terra, então vamos adiante, falar sobre as outras coisas.

4 comments:

  1. o video do evento:


    http://www.youtube.com/watch?v=NvJjk9fH46Y

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  2. Ficou muito legal!

    Uma dose exata de sexualidade, humor e... música erudita.

    Muito bom!

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  3. Fantástico. Apenas isso.

    É engraçado ver esses falsos moralistas que dão audiência aos programas mais chulos virem criticar a obra por causa dumas poucas palavras (e fora do contexto).
    Mas hipocrisia,assim como futebol, é uma marca nacional.

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